segunda-feira, 7 de março de 2016

Isaías 45.7 afirma que Deus criou o mal?


Um dos maiores mistérios da teologia desde o primeiro século da era cristã até hoje é a discussão sobre a existência do mal (pecado, o que é moralmente reprovável). Vários teólogos ao longo dos séculos tentaram e tentam justificar a existência do mal. Isso envolve várias questões: começa com a definição de mal (isso por si só já é algo bem complexo), possíveis causas, consequências, objetivo, decretos de Deus etc. Calvinistas afirmam taxativamente que Deus deliberadamente criou o mal; o ponto fraco disso é que muitas vezes acabam incorrendo no determinismo, ou fatalismo. Arminianos afirmam que o mal surgiu no homem ou em Satanás, ou até que apenas veio a existir, fica então o questionamento da criação de algo que foi criado à parte/independente de Deus.

Nesse debate, um dos argumentos usados para justificar que Deus criou o mal é o texto de Isaías 45.7. Este texto parece afirmar claramente que Deus criou o mal. Será mesmo? Este post não é para resolver a questão do mal, mas vamos analisar o texto e compreender se ele realmente afirma a criação do mal por parte de Deus.

Acompanhe o argumento do livro... Em 44.24-28 o profeta dirige ao povo de Israel uma mensagem de Deus com a promessa de redenção do povo. Jerusalém será novamente habitada e reedificada (v. 26); nessa profecia Deus ainda anuncia ao povo que Ciro será Seu instrumento de salvação, de libertação do cativeiro babilônico, e talvez o povo ficasse um pouco incrédulo com o fato de um homem como Ciro (persa, cruel, poderoso rei) obedecer a Deus, mas Deus afirma que assim como as águas Lhe obedecem, Ciro também Lhe obedeceria (vv. 27-28). 

 E assim como o povo fora avisado, outra profecia foi dirigida a Ciro e a ele foi anunciada a vontade de Deus (45.1). Deus revelou ao imperador que ele o ajudaria, Deus lhe entregaria nas mãos reinos e riquezas (vv. 1-3). No entanto, o motivo dessa atitude não era o amor de Deus por Ciro, mas sim o amor de Deus pelo seu povo, Israel (v. 4) – tudo isso se alinha bem com a profecia anterior. 

 Ciro, como homem persa, tinha sua própria religião, seus deuses e não conhecia Yahweh, o Deus de Israel (v. 4b). Por isso nos vv. 5-7 Deus se “apresenta” a Ciro. E diz que:
  • É o único Deus (v. 5a); 
  • Se o imperador não o conhece, isso não muda quem Ele é, nem Sua vontade (v. 5b);
  • Localização geográfica não muda quem ele é; se em Israel ou na Pérsia, Yahweh é o Senhor (v. 6); 
  •  Ele mesmo cria a paz e o mal (v. 7).
À luz do exposto vamos analisar detalhadamente o v. 7. 

Eu formo a luz e crio as trevas;
faço a paz e crio o mal;
eu, o SENHOR, faço todas estas coisas 

Neste texto profético em forma de poesia hebraica, o que temos é um paralelismo no qual a duas primeiras frases apresentam ideias sinônimas e a terceira completa/resume a ideia exposta nas duas frases anteriores. Assim, temos “luz” e “paz” como ideias sinônimas (que representam aquilo que é bom) que contrastam com “trevas” e “mal” (que representam aquilo que é desagradável). Ao final Deus afirma que faz “todas estas coisas”. A religião persa cria na divisão dualística de dois deuses, um da luz e outro das trevas. E Deus afirma claramente que estas coisas não são deuses, Ele é quem faz todas elas. Logo o texto de Is 45.7 não afirma que Deus criou o mal, mas completa o argumento de que só Yahweh é Deus, e nenhum outro há. Além disso o texto não fala de origens, de criação, não é uma lista das coisas que Deus criou, os verbos estão no presente (formo, crio, faço), fala de coisas que Deus ainda faz. E ainda, “mal” está em contraste com “paz” e o inverso da paz não é o pecado, ou aquilo que é reprovável moralmente, mas as calamidades, a desgraça, intranquilidade e coisas do tipo. É desse mal que o texto fala. Sim, é Deus quem controla os desastres, isso está em harmonia com a profecia de Isaías sobre Deus usar Ciro para destruir a Babilônia e libertar Israel. A NVI corrige essa má leitura quando traduz o texto da seguinte forma: 

Eu formo a luz e crio as trevas;
promovo a paz e causo a desgraça;
eu, o SENHOR, faço todas essas coisas. 

Por fim, de forma alguma Is 45.7 afirma que Deus criou o mal, antes, à luz de sua literatura e contexto histórico, reforça a ideia de que só Yahweh é Deus, sobre tudo, em qualquer lugar do mundo, quer os homens tenham consciência disso ou não, e nenhum outro há além dEle. Mas antes de encerrar o post, não estou querendo dizer com isso que Deus não criou o mal, quero apenas corrigir más interpretações; isso não encerra a questão sobre se Deus criou o mal ou não. Nenhum texto da Bíblia afirma isso, como também nenhum texto afirma o contrário. À parte deste texto (Is 45.7), o mistério continua.

Um comentário: