Um dos maiores mistérios da
teologia desde o primeiro século da era cristã até hoje é a discussão sobre a
existência do mal (pecado, o que é moralmente reprovável). Vários teólogos ao
longo dos séculos tentaram e tentam justificar a existência do mal. Isso
envolve várias questões: começa com a definição de mal (isso por si só já é
algo bem complexo), possíveis causas, consequências, objetivo, decretos de Deus
etc. Calvinistas afirmam taxativamente que Deus deliberadamente criou o mal; o
ponto fraco disso é que muitas vezes acabam incorrendo no determinismo, ou
fatalismo. Arminianos afirmam que o mal surgiu no homem ou em Satanás, ou até
que apenas veio a existir, fica então o questionamento da criação de algo que
foi criado à parte/independente de Deus.
Nesse
debate, um dos argumentos usados para justificar que Deus criou o mal é o texto
de Isaías 45.7. Este
texto parece afirmar claramente que Deus criou o mal. Será mesmo? Este post não
é para resolver a questão do mal, mas vamos analisar o texto e compreender se
ele realmente afirma a criação do mal por parte de Deus.
Acompanhe o argumento do livro... Em
44.24-28 o profeta dirige ao povo de Israel uma mensagem de Deus com a promessa
de redenção do povo. Jerusalém será novamente habitada e reedificada (v. 26);
nessa profecia Deus ainda anuncia ao povo que Ciro será Seu instrumento de
salvação, de libertação do cativeiro babilônico, e talvez o povo ficasse um
pouco incrédulo com o fato de um homem como Ciro (persa, cruel, poderoso rei)
obedecer a Deus, mas Deus afirma que assim como as águas Lhe obedecem, Ciro
também Lhe obedeceria (vv. 27-28).
E assim como o povo fora avisado,
outra profecia foi dirigida a Ciro e a ele foi anunciada a vontade de Deus (45.1).
Deus revelou ao imperador que ele o ajudaria, Deus lhe entregaria nas mãos reinos e
riquezas (vv. 1-3). No entanto, o motivo dessa atitude não era o amor de Deus
por Ciro, mas sim o amor de Deus pelo seu povo, Israel (v. 4) – tudo isso se
alinha bem com a profecia anterior.
Ciro, como homem persa, tinha sua
própria religião, seus deuses e não conhecia Yahweh, o Deus de Israel (v. 4b).
Por isso nos vv. 5-7 Deus se “apresenta” a Ciro. E diz que:
- É o único Deus (v. 5a);
- Se o imperador não o conhece, isso não muda quem Ele é, nem Sua vontade (v. 5b);
- Localização geográfica não muda quem ele é; se em Israel ou na Pérsia, Yahweh é o Senhor (v. 6);
- Ele mesmo cria a paz e o mal (v. 7).
À luz do exposto vamos analisar detalhadamente o v. 7.
Eu formo a luz e crio as trevas;
faço a paz e crio o mal;
eu,
o SENHOR, faço todas estas coisas
Neste texto profético em
forma de poesia hebraica, o que temos é um paralelismo no qual a duas primeiras
frases apresentam ideias sinônimas e a terceira completa/resume a ideia exposta
nas duas frases anteriores. Assim, temos “luz” e “paz” como ideias sinônimas (que
representam aquilo que é bom) que contrastam com “trevas” e “mal” (que
representam aquilo que é desagradável). Ao final Deus afirma que faz “todas estas
coisas”. A religião persa cria na divisão dualística de dois deuses, um da luz
e outro das trevas. E Deus afirma claramente que estas coisas não são deuses,
Ele é quem faz todas elas. Logo o texto de Is 45.7 não afirma que Deus criou o
mal, mas completa o argumento de que só Yahweh é Deus, e nenhum outro há. Além
disso o texto não fala de origens, de criação, não é uma lista das coisas que
Deus criou, os verbos estão no presente (formo, crio, faço), fala de coisas que
Deus ainda faz. E ainda, “mal” está em contraste com “paz” e o inverso da paz
não é o pecado, ou aquilo que é reprovável moralmente, mas as calamidades, a
desgraça, intranquilidade e coisas do tipo. É desse mal que o texto fala. Sim,
é Deus quem controla os desastres, isso está em harmonia com a profecia de
Isaías sobre Deus usar Ciro para destruir a Babilônia e libertar Israel. A NVI
corrige essa má leitura quando traduz o texto da seguinte forma:
Eu formo a luz e crio as trevas;
promovo a paz e causo a desgraça;
eu,
o SENHOR, faço todas essas coisas.
Por fim, de forma alguma Is 45.7 afirma
que Deus criou o mal, antes, à luz de sua literatura e contexto histórico, reforça
a ideia de que só Yahweh é Deus, sobre tudo, em qualquer lugar do mundo, quer
os homens tenham consciência disso ou não, e nenhum outro há além dEle. Mas
antes de encerrar o post, não estou querendo dizer com isso que Deus não criou
o mal, quero apenas corrigir más interpretações; isso não encerra a questão
sobre se Deus criou o mal ou não. Nenhum texto da Bíblia afirma isso, como
também nenhum texto afirma o contrário. À parte deste texto (Is 45.7), o mistério
continua.
Muito bom o texto meu amigo. Deus te abençoe. Foi muito esclarecedor.
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